Já estivemos lá, já fizemos isso, diz Mikhail Gorbachev.
Mikhail Gorbachev Em Moscou
Introduzimos a Perestroika porque tanto nossos cidadãos quanto nossos líderes entenderam que não era mais possível continuar como estávamos. O sistema soviético, criado na URSS com os lemas do socialismo e ao custo de enormes esforços, perdas e sacrifícios, havia transformado nosso país numa grande potência com uma forte base industrial. Em condições extremas, ele funcionou; em circunstâncias mais normais, ele condenou nosso país à inferioridade.
Isso ficou claro para mim e para outros que pertenciam à nova geração de líderes, assim como para membros da velha guarda que se preocupavam com o futuro do país. Lembro-me de uma conversa que tive com Andrei Gromyko poucas horas antes da plenária do Comitê Central que deveria eleger um novo secretariado-geral em março de 1985. O veterano ministro de exterior concordou que era necessária uma mudança dramática, e que qualquer que fosse o risco, era extremamente vital seguir adiante.
Costumam perguntar se eu e outros líderes da Perestroika sabíamos que tipo de mudança teríamos que implementar. A resposta era sim e não: não completamente e não imediatamente. O que precisávamos abandonar estava bastante claro: o sistema ideológico, político e econômico rígido; a confrontação com o resto do mundo; e a corrida de armas descontrolada. Ao rejeitar tudo isso, tivemos o apoio total da população, enquanto os oficiais que depois se mostraram stalinistas durões tiveram que ficar quietos e aceitar relutantemente.
Foi bem mais difícil encontrar uma resposta para a próxima pergunta: quais eram nossos objetivos, o que queríamos conseguir? Avançamos muito num curto período de tempo – saímos das tentativas de reparar o sistema existente para o reconhecimento da necessidade de substituí-lo. Eu sempre aderi à escolha que havia feito a favor da mudança evolucionária – mudança que não prejudicaria as pessoas e o país e evitaria o derramamento de sangue.
À medida que conflitos novos e antigos emergiam, continuar nesse curso foi um grande desafio. Enquanto os radicais nos pressionavam para irmos mais rápido, os conservadores tentavam nos impedir. Ambos os grupos são os principais culpados pelo que aconteceu depois. Mas eu também aceito minha parcela de responsabilidade: nós, os reformistas, cometemos erros que custaram muito ao país.
Nosso principal erro foi demorar demais para reformar o Partido Comunista. O partido havia iniciado a Perestroika, mas logo ele se tornou um obstáculo para seguir adiante. A alta burocracia do partido organizou uma tentativa de golpe em agosto de 1991, que sabotou a Perestroika.
Nós também demoramos para reformar a união das repúblicas, que havia passado por muita coisa durante sua existência conjunta. Elas haviam se tornado verdadeiros Estados, com suas economias e suas próprias elites. Precisávamos encontrar um jeito para que elas existissem como Estados soberanos dentro de uma união democrática e descentralizada. No referendo em março de 1991, mais de 70% da população apoiou a ideia de uma nova união de repúblicas soberanas. Mas a tentativa de golpe, que enfraqueceu minha posição como presidente, selou o seu destino.
Também cometemos outros erros: no calor das batalhas políticas, perdemos a economia de vista, e a população nunca nos perdoou pela falta de itens triviais e pelas filas para conseguir produtos básicos.
Mas, embora tudo isso seja verdade e o que quer que digam os meus críticos, as conquistas da Perestroika são inegáveis. Ela foi a transição para a liberdade e a democracia. Pesquisas de opinião confirmam que até os críticos da Perestroika e de seus líderes – principalmente de mim – apreciam os ganhos que ela permitiu, como a rejeição do sistema totalitário; as liberdades de opinião, reunião e religião; a liberdade de ir e vir; e o pluralismo político e econômico.
Depois que a Perestroika foi sabotada e a União Soviética desmantelada, os líderes russos optaram por uma versão “radical” das reformas. Sua “terapia de choque” foi bem pior que a doença. Muitas pessoas mergulharam na pobreza; as diferenças salariais estavam entre as maiores do mundo. A saúde, a educação e a cultura sofreram golpes duros. A Rússia começou a perder sua base industrial, sua economia passou a ser totalmente dependente das exportações de petróleo e gás natural.
Na virada para o novo século, o país estava num estado de declínio parcial, enfrentando o caos. Os processos democráticos haviam sofrido como resultado da deterioração geral da Rússia. As eleições em 1996 e a transferência de poder para um “herdeiro” nomeado em 2000 foram democráticas na forma, mas não no conteúdo. Foi então que comecei a me preocupar com o futuro da democracia na Rússia.
Entendemos que numa situação em que a própria existência do Estado russo estava em risco, nem sempre era possível agir “de acordo com as regras”: medidas decisivas e até elementos de autoritarismo podem ser necessários em épocas assim. Foi por isso que eu apoiei o que Vladimir Putin fez durante seu primeiro mandato como presidente. Eu não estava sozinho: 70% da população o apoiou, e acredito que ela estava certa.
Entretanto, estabilizar o país não pode ser o único objetivo ou o objetivo final. A Rússia precisa de desenvolvimento e modernização para se tornar um líder no mundo globalizado e interdependente. Nosso país não se aproximou desse objetivo nos últimos anos, apesar do fato de termos nos beneficiado dos preços altos de nossas principais exportações – óleo e gás – por uma década. A crise global atingiu a Rússia com mais força do que muitos outros países, e somos os únicos culpados por isso.
A Rússia só avançará com confiança se seguir o caminho democrático. Recentemente, houve vários atrasos nesse sentido.
O processo democrático perdeu seu ímpeto; de várias maneiras, ele retrocedeu. Todas as principais decisões são tomadas pelo poder Executivo; o parlamento só concede a aprovação formal. A independência dos tribunais foi questionada. Não temos um sistema partidário que permitiria que uma maioria real vencesse e mesmo assim levasse a opinião da minoria em conta e permitisse uma oposição ativa. Há um sentimento crescente de que o governo teme a sociedade civil e gostaria de controlar tudo.
Mas nós já estivemos lá, já fizemos isso!
Será que queremos voltar no tempo? Não acho que as pessoas queiram isso, incluindo nossos líderes. (Opinião dO Cachete: Eu quero!!!)
O descontentamento com o estado das coisas está aumentando em todos os níveis. Percebo o alarme nas palavras do presidente Dmitry Medvedev quando ele se pergunta, como fez em seus recentes pronunciamentos públicos: “Será que uma economia primitiva baseada em matéria-prima e corrupção endêmica deve nos acompanhar no futuro?”. Será que podemos ser complacentes quando o “aparato do governo no nosso país é o maior empregador, o maior editor, o melhor produtor, o próprio Poder Judiciário, um partido em seu direito, e, por fim, o próprio país?”
É impossível dizer isso com mais força.
Concordo com o presidente. Concordo com seu objetivo de modernização. Mas a modernização não funcionará se as pessoas forem deixadas de lado, como se fossem apenas peões. Se quisermos que as pessoas sintam e ajam como cidadãos, há apenas uma fórmula: a democracia, o Estado de direito e um diálogo aberto e honesto entre o governo e a população.
O que está nos segurando é o medo.
Tanto entre a população quanto entre as autoridades, há temores de que uma nova rodada de modernização possa levar à instabilidade e até mesmo ao caos. Na política, o medo é um péssimo guia; precisamos superá-lo.
Hoje, a Rússia tem muitas pessoas livres e de mente independente que estão prontas para assumir a responsabilidade e sustentar a democracia. Mas muita coisa depende agora de como o governo vai agir.
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