Cachete - S. M. Antigamente, no Nordeste do Brasil, era assim que se chamava qualquer comprimido para dor.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Dra. Marise Morais: O Conceito de Cultura na Cabeça de um Blogueiro

Dra. Marise Morais
Psicóloga e Antropóloga
Encontrei em uma rede social onde estou inscrita, um “link” para um artigo em um blog que faz parte de uma conhecida revista semanal de circulação nacional. Esse articulista iniciava seus escritos com as seguintes palavras: 

“O que há em comum entre os ianomâmis, os bororos e os xavantes? Resposta: nada! São índios, mas nada os une. “Ah, pertencem ao mesmo tronco linguístico macro-jê”. Claro, claro… Nós e os iranianos temos o indo-europeu como raiz comum, não é mesmo? Não existe uma “cultura indígena”. Isso é invenção do cretinismo antropológico. Da mesma sorte, perguntem à África o que seria uma “cultura negra”… Os tutsis e hutus rejeitarão brutalmente essa reunião de desigualdades, e rejeitam, diga-se, cortando uns as pernas dos outros.” 

Minha primeira indagação é : Conhece esse blogueiro o conceito de cultura? Parece-me que não. E me impressiona mais ainda o fato desse blog falar de “Ciência Política”. Desconheço a formação acadêmica desse senhor, mas creio que qualquer pessoa de bom senso desconfiaria de alguém que chama todo o arcabouço antropológico que atravessa os séculos desde Franz Boas e Radcliffe-Brown passando por Malinowski e chegando ao Brasil de Kurt Nimuendaju e Claude Lévi-Strauss de “cretinice antropológica” ou “meio de vida”. 

Preferi nem citar os mestres Darcy e Berta Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira e Florestan Fernandes, sem falar nos “ desocupados” irmãos Villas Boas. 

Aprendi muito cedo no curso de psicologia que não se deve dar importância à insanidade e muito menos respondê-las, mas não poderia deixar passar uma insanidade que tenta tirar o brilho dos grandes mestres da antropologia mundial, simplesmente em nome de uma ideologia suja e tacanha. 

A quem serve eliminar o conceito de cultura indígena da cabeça do povo brasileiro? Na melhor das intenções para demonstrar que não existindo povo não pode haver propriedade. 

Gostaria de pedir vênia aos meus mestres do Mestrado de Antropologia ( Salve! Roberto Motta, Maria do Carmo Brandão e Russell Scott) para falar um pouco do conceito de cultura. 

Os antigos conceitos de cultura falavam de usos e costumes, de língua e religiosidade que primavam inclusive pela idéia de preservar as culturas isoladas para que sobrevivessem. Havia o medo da aculturação. Hoje, o conceito de cultura inclui não somente esses componentes, mas avança para uma ideia mais ampla. Mesmo com a adição de hábitos de outras culturas, essa adição tem como seu fio guia um sentimento de identidade e de vivência. 

Carid Naveira (2005) pesquisador da UFSC, em um magnífico artigo sobre cultura e identidade,cita um trabalho de Oscar Calavia (2004) onde este analisa a relação entre o índio, o forró e o reparto de uma caixa de chocolates, demonstrando que todos esses eventos podem ocorrer (desafiando as teorias pessimistas da aculturação) sem que ameace a cultura dos índios yaminawa pois esses são capazes “ de improvisar a tradição através desses novos elementos e, simultaneamente, de se transformar ante os recentes contextos que coloca a modernidade. 

A cultura de índio ou um africano (seja Hutu, Tutsi ou Massai) não existe porque se pinta, se veste ou é parente consanguíneo desse ou daquele grupo. Os mais novos conceitos de cultura demonstram que a cultura existe porque ela está no homem, ela é um sentimento de pertencer, que passa pela língua, pelas canções de ninar ouvidas dos lábios de uma mãe amorosa, pelo culto ao ancestral, mas principalmente pelo sentimento de “eu sou”. Esse sentimento me permite viajar por outros mundos emocionais e sensíveis sem que precise me sentir desvalorizado ou medíocre. Esse mesmo sentimento me permite ir e voltar, reafirmando minha cultura e meu povo. Ele passa pelo parentesco, pela linguística, mas principalmente por essa integridade interna do eu. 

Já que para o blogueiro em pauta a cultura indígena (talvez por ser ágrafa – e hoje não mais !) não existe, gostaria de relembrar o clássico episódio do rapto das sabinas em que os romanos (cultura dominante e poderosa) raptam mulheres para acasalar e ter filhos. O que os poderosos romanos não previram é que seus rebentos seriam embalados e cuidados pelas estrangeiras escravizadas, pois sempre oramos, contamos e sonhamos na língua de nossas mães. Ironicamente descobriram que cultura não é poder. Perderam sua língua materna! 

É claro que temos pessoas que convencidas da sua inferioridade (que não é cultural e sim emocional) absorvem gestos e jeitos de outros lugares (videm a “americanização” que hoje vivemos até nas placas de comércio) e o incensar o novo pelo novo. Mas sabe-se que isso quando ocorre , o indivíduo sofre pela perda da sua identidade, provocando desequilíbrios emocionais muitas vezes irreparáveis e um ódio a tudo que o represente ou o remeta às suas origens (Isso não é um diagnóstico seu senhor blogueiro ! Nem das suas conexões internacionais, por mais que se aproxime). 

Para Gow (1991-2001), cultura é o que é vivido. Negar essa cultura, em nossa ótica daria no mínimo e com muita sorte pelo menos uns vinte e cinco anos de análise e com uma boa ajuda dos colegas psiquiatras. 

Tem gente, como se diz aqui na minha terra, que houve o galo cantar e não sabe onde. Recomendo para pessoas habituadas a ler apenas cento e quarenta caracteres das janelas do twitter que, antes de escrever sobre algo, leiam ao menos um artigo (recomendo ao senhor blogueiro um maravilhoso – basta um – para que não se esforce muito, do brilhante “cretino” Carid Naveira sobre cultura – tem no Google, não se apavore). Vai lhe fazer muito bem, ou muito mal. Pois pode bater no fenômeno psicanalítico do desmentido. 

“ Eu sou mameluco. 
Sou de Casa Forte. 
Sou de Pernambuco. 
Eu sou o Leão do Norte”. 
(Lenine). 


Marise de Souza Morais e Silva 
Psicóloga Clínica – Psicanalista e Pós Graduada em Antropologia. 
marise@artpage.com.br

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(Joseph Pulitzer)